O SONHO DE ÍCARO… GAMMON
A vida de Samuel Rhea Gammon, o fundador do Instituto Presbiteriano Gammon e da Universidade Federal de Lavras
Crônica: Prof. Paulo Roberto Silva
Com os versos da canção “Sonho de Ícaro”, interpretada pelo cantor Biafra (voar, voar, subir, subir, ir por onde for…), escrevi sobre o sonho do menino, o fascínio e vontade de voar que os aviões nele despertavam desde tenra idade. Enormes aviões com os roncos característicos de seus possantes motores passavam, diariamente, a duzentos metros de sua cabeça, na reta final de pouso no campo de aviação de Lavras. As alturas, ou melhor, a vista que se podia ter lá de cima fazia-o também imaginar escaladas na vistosa Serra da Bocaina, aquela belíssima escultura longilínea que emoldura a cidade e que se descortinava da varanda de sua casa. Assim, quando cresceu, o menino voou bastante e com a mesma fascinação dos tempos de criança. Sem contar os voos de lazer em pequenos ultraleves e helicópteros, foram quase 1.500 viagens aéreas, de maio de 1973 a dezembro de 2011, quando ocupava cargos executivos na administração pública federal. Foram expressivas as cifras de contatos diretos com pessoas ao longo desses quase 39 anos de trabalho, no país e no exterior. As viagens somaram 3.000 horas de voo e mais de 5.000 horas de espera em aeroportos. Os contatos se estenderam a nada menos que 2.500 aeromoças e cerca de 100.000 passageiros embarcados, além de 8.000 comissários de apoio em terra, 30.000 agentes diversos, como translados em terra, hotéis, restaurantes e os próprios destinatários dos objetivos das viagens de serviço.
Mas, por que tanta precisão nas cifras? Simples, aviação é meu hobby predileto. Inclui aeromodelos comandados a cabo ou controle remoto, voos em ultraleves e helicópteros nos mais diversos e bonitos lugares no país e no exterior como o deslumbrante cenário composto pelas baías do Rio Hudson, Newark e Manhattan. Voos em simuladores, até mesmo do Mirage III, do Centro de Treinamento da Base Aérea de Anápolis também eram apreciados. Portanto, não poderia deixar de interessar pelos aviões de carreira. Visitas e até pousos e decolagens nas cabines desses grandes aviões foram vários, ainda no tempo em que isto era permitido. Navegar pela rota e identificar rios, lagos, montanhas, jazidas minerais, florestas e cidades, ainda que pela janela do passageiro, era uma predileção sem igual.
Graças a esse “sonho de Ícaro”, inato no menino, foi possível localizar e apreciar inúmeros pontos geográficos ao redor do mundo. Não raras vezes pedia ao comandante para avisar-me, por meio das aeromoças, a passagem por alguma cidade ou acidente geográfico de interesse. Foi assim, entre tantos, com a Baía dos Porcos, no Caribe e a cordilheira dos Apalaches, entre o sudoeste da Virgínia e o Tennessee. Essa cordilheira sempre me despertou grande interesse após a leitura de um livro sobre a vida de Samuel Rhea Gammon, o fundador do Instituto Presbiteriano Gammon e da Universidade Federal de Lavras cuja célula mater foi a Escola Agrícola.
Ali naquela cordilheira dos Apalaches, nas montanhas Alleghenies, de cenário encantador, viveu até os 24 anos aquele emérito educador. Nasceu em Bristol, na Virgínia, em 30 de abril do histórico ano de 1865, quando a anestesia dos dentistas ainda era apenas um gole de aguardente de sidra ou outra bebida mais forte. Naquele ano, a pouco mais de 300 km a nordeste dali, travavam-se as mais violentas batalhas dos sulistas contra os nortistas, na chamada Guerra da Secessão. Passaram-se apenas nove dias de seu nascimento e após uma série de derrotas, os sulistas também chamados de confederados se renderam às tropas do norte, encerrando-se assim a guerra civil com a assinatura de rendição do General Lee, em Appomattox, a nordeste de Bristol e próximo à Richmond no mesmo estado da Virgínia.
Ainda menino e com apenas seis anos, Sam mudou-se com a família para as proximidades de Abingdon, em Montgomery, onde também morou, cem anos depois, o ativista e pastor, Martin Luther King. Em 1955, naquela cidade, Luther King liderou o movimento contra a discriminação de negros. Eles não podiam andar no mesmo ônibus que os brancos. Venceu a causa e foi sancionada uma lei nesse sentido. Mas, mesmo 15 anos depois, já no final dos anos 1970, quando trabalhei na Michigan State University, próximo à Detroit, berço da indústria automobilística e do sindicalismo, pude sentir que ainda havia certo medo da população de confrontos racistas. Hoje estão bastante minimizados, embora o presidente, negro, Barack Obama, tenha sido obrigado a intervir para pacificar algumas desastradas ações de uns poucos policiais contra negros. Mas, voltando aos Gammon, um pouco mais tarde se mudaram para Rural Retreat, no mesmo estado da Virgínia. Estudou no King College, de Bristol e no Seminário Teológico Union, naquele mesmo estado. Pouco depois chegou ao Brasil, aos 24 anos, no natal de 1889.
Na cordilheira dos Apalaches, onde morava, corre o rio Holston serpenteando as montanhas formando um dos mais belos cenários do mundo e que encantava o menino da roça, Samuel Gammon. Levantava bem cedo, às cinco horas, para ajudar a tirar o leite das vacas e levar frutas e outros produtos da fazenda para vender na cidade. Por causa disso e de minhas tradições rurais, sempre interessei em conhecer aquela região e foi muito bom avistá-la, ainda que do alto, informado que fui pela comissária de bordo, conforme pedido. Ao identificar e sobrevoar por algum tempo a extensa região, mergulhei em emocionante viagem pelos escaninhos da alma, relembrando o caráter e os grandes feitos do Reverendo Samuel Rhea Gammon. Emocionado com a ampla vista que se descortinava, pensei como foi grande o coração daquele jovem missionário que ali deixou a fazenda, os pais e toda a família.
Partiu sozinho, aos 24 anos, para uma missão num país desconhecido e do qual não conhecia sequer uma palavra do idioma. Era preciso ter muito amor para compartilhar. Em março de 1892 visitou Lavras pela primeira vez e poucos meses depois retornou à cidade e com seus colegas decidiu que ali seria o novo local para a transferência do Colégio Internacional da Missão Presbiteriana, que funcionava em Campinas, cidade tomada pela epidemia da febre amarela que vitimou muitos missionários. Em novembro do mesmo ano a Missão chegou definitivamente a Lavras, depois de cinco dias de viagem de trem. Não havia ainda o ramal ferroviário de Ribeirão Vermelho para Lavras e o trecho teve que ser vencido a cavalo, com travessia do Rio Grande por balsa. As bagagens chegaram de carro de boi pelos 9 km que separam as duas cidades. A escola foi aberta no dia1º de fevereiro de 1893, com nove alunos. Uma semana depois havia catorze. Hoje são milhares de alunos.
Há pessoas que são predestinadas a servir a humanidade e Samuel Gammon não se contentou em deixar apenas saudade na cidade que escolheu para morar e servir pelo resto de sua vida. Descortinando a vista do alto do edifício do hotel onde me hospedei em Reston, na Virgínia, podia ver a 20 km de distância, a leste, a sede do Pentágono, famoso órgão de defesa dos EUA e a oeste, mais distante ainda, as últimas elevações do espinhaço dos Apalaches, com as montanhas Alleghenies. E pensar que logo a 200 km a sudoeste, ou pouco mais, estavam os sítios da infância e juventude de Samuel Gammon…, Rural Retreat na Lee Highway, próxima à Interstate 81, Abingdon e Bristol mais ao sul e já próximo ao Tennessee. Contemplar aquelas distantes montanhas ao amanhecer foi como reviver a saga do menino Sam Gammon, que todas as manhãs acordava às cinco horas para ajudar o pai na lida da roça. Infância abençoada que moldou seu caráter, bem ali entre as belezas daquelas montanhas, para um dia sonhar com a criação de uma Escola Agrícola que pudesse desenvolver e proporcionar o progresso humano. E seu sonho se tornou realidade, mas bem longe, no Brasil, muito distante dali, a uns 9.000 km que consumiram trinta e três dias na primeira viagem no pequeno e frágil navio Advance. E assim, de seu sonho nasceu a ESAL/UFLA, dezesseis anos depois de ser instalado o Colégio Evangélico em Lavras. Poderia haver emoção maior para alguém, ali in locco, exatamente no ano de 1989,quando se completava um século da chegada do reverendo Gammon ao Brasil, aquele idealista que sonhava com uma escola para a glória de Deus e o progresso humano? E ainda pensar que este protagonista foi um dos beneficiários de sua grande obra? Ora, se ali estava naquele momento, frequentando uma Conferencia Internacional de Programas de Desenvolvimento do Ensino Agrícola Superior, patrocinada pelo Departamento de Estado dos EUA e representando o Governo Brasileiro, tudo devia à iniciativa de 100 anos antes de Sam Gammon. Afinal me graduei na Escola fundada por ele, a ESAL/UFLA e nela também me tornei docente, galgando em seguida postos na administração pública federal na área da educação agrícola superior.
Assim, agradeci a Deus pelo seu imensurável legado à Lavras, especialmente a criação do Instituto Evangélico com vários cursos superiores e ainda a Escola Agrícola, fundada em 1908 e posteriormente transformada em universidade federal de elevada conceituação, sendo hoje das primeiras no ranking nacional, conforme avaliação do MEC. O Rev. Gammon fez “escola”, pois sua vida e obra inspiraram as novas gerações com exemplos de caráter, espírito empreendedor e pastor de almas honrado e aclamado pelas pessoas de seu tempo. Ele fez diferença por onde passou. Dedicou-se à Glória de Deus e ao Progresso Humano, tal qual está inscrito no pórtico do majestoso auditório Lane Morton, do belíssimo campus do Instituto Presbiteriano, com suas alamedas floridas, cujos jardins e árvores foram plantados por ele próprio. Ali, na bela chácara do Instituto e ao lado da Fazenda Ceres, da então Escola Agrícola que ele próprio projetou e construiu, viveu o resto de sua vida. Se ele nasceu em um ano histórico, da guerra da Secessão, poucos dias antes da rendição do general Lee que comandava as tropas sulistas, o Reverendo Sam Gammon, faleceu aos 63 anos de idade, em 1928, também num dia histórico. Faleceu no carro especial da E.F. Central do Brasil, na cidade de Barra Mansa, quando seria transferido para o trem da Oeste de Minas. Voltava do Rio para Lavras, após delicada cirurgia. Não resistiu à viagem de volta para casa onde queria passar seus últimos dias de vida. Era o dia 04 de Julho, o Independence Day, a data nacional de seu país. Certamente, ali, naquele memorável dia, cercado por sua esposa, Clara Gammon, alguns amigos e até mesmo o diretor da Central do Brasil, ter se lembrado de saudar a pátria-mãe com as estrofes do hino nacional, tal qual o menino da Virgínia entoava, patrioticamente, com a mão sobre o peito:
“Oh, say, can you see, by the dawn’s early light
What so proudly we hailed at the twilight’s last gleaming? …..
Oh, say, does that star-spangled banner yet wave Over the land of the free and the home of the brave?…”
Mas, o Reverendo Gammon deixou plantado em Lavras muito mais que escolas, prédios, árvores e flores… plantou a semente do saber, que alimenta a alma, o progresso humano. Influenciou a muitos e ainda hoje é inspiração como exemplo de dignidade, trabalho e amor ao próximo.
Não foi à toa, portanto, que a cidade de Lavras parou para chorar, naquele 04 de julho de 1928, quando ele partiu para a glória do Senhor. Muito tempo depois, também eu derramei lágrimas de emoção quando sobrevoei o estado da Virgínia e ali fiquei por uma semana, bem próximo à sua terra natal e nele pensei, na sua infância rural, a viagem definitiva para o Brasil e o seu grande legado à Lavras, onde nasci, estudei e fui docente na própria UFLA que ele, Gammon, fundou há mais de 100 anos.
Mas afinal…, “Sonho de Ícaro – Gammon”? Não…, ele sonhou muito mais alto, pois com sua magnífica obra influenciou milhares de almas, dedicando-se à Glória de Deus e ao Progresso Humano! Sonho de Ícaro foi apenas o do menino das Lavras, que se apaixonou por voos, aprendeu a navegar pelos ares e assim pode ver e conhecer a terra de Sam Gammon.
Sou grato a ele e assim também é toda a cidade de Lavras. Sua memória é e será reverenciada para sempre na Terra dos Ipês e das Escolas. Parabéns Lavras. Parabéns, Instituto Presbiteriano Gammon pelos seus 146 anos de profícuo trabalho em nossa terra.
Paulo das Lavras